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Antes de adquirir a Sarabi, minha primeira Golden Retriever, visitei sites de canis brasileiros, norte-americanos e canadenses. Fiquei surpresa ao aprender que no exterior existem inúmeros tipos de Goldens, dependendo do foco da criação. De cara, pude identificar duas grandes correntes: os irresistíveis Goldens de exposição, de ossos largos, pelagem farta, cabeça quadrada e olhos apertadinhos; e os versáteis Goldens “de trabalho”, bem menos vistosos, mais leves, atléticos e rústicos.

Aliás, aproveito para desfazer o pré-conceito de que cães de trabalho são fruto de criações descompromissadas. Os canis de Goldens “de trabalho” a que me refiro são criações sérias e respeitadas que seguem o padrão da raça e que registram seus filhotes nos órgãos cinófilos competentes.

No Brasil, entretanto, encontrei apenas os Goldens criados para exposições. Na época, essa falta de opções não me incomodou muito. Além de Goldens assim serem mais bonitos, nossos criadores se gabavam de fazerem um rigoroso controle de saúde.

Com o tempo e, principalmente, após a aquisição de nossa segunda Golden, a Corah, percebi a existência de falhas graves no tal “rigoroso controle de saúde” anunciado. Apesar da incidência cada vez maior de Goldens com displasia coxofemoral, caso de minha Corah, há Goldens sendo acasalados antes dos dois anos, idade em que devem ser submetidos à radiografia que verifica a presença da doença.  Igualmente irresponsáveis são os  criadores que simplesmente desconsideram os laudos das radiografias de seus cães displásicos, ou que obtêm um segundo laudo suavizando os resultados do exame.  Finalmente, milhares de reais são gastos com inscrições de exposições, handlers, exercícios e tratamentos para deixar os Goldens mais bonitos e fortes. Mas conta-se nos dedos quantas radiografias de nosso plantel são enviadas a órgãos de respaldo internacional, como a OFFA – mesmo estando as despesas do envio embutidas no valor do exame radiográfico feito por diversos centros diagnósticos brasileiros. Isso sem falar nos campeões de pista submetidos a cirurgias estéticas absolutamente antiéticas.

Essa escancarada falta de compromisso entre criadores tidos como referências nacionais me fez enxergar a Cinofilia voltada para exposições com outros olhos. Será que os eventos caninos de conformação e beleza se reduziram a um belo e fútil desfile de coleções?

Ano passado, o documentário britânico Segredos do Pedigree, apesar do dispensável formato sensacionalista, abriu os olhos de cinófilos de todo o mundo para as conseqüências do inbreeding – o polêmico acasalamento consangüíneo que, segundo todos os praticantes, “é seguro desde que feito com critério”. Em tempo, o acasalamento consangüíneo – pai com filha, mãe com filho ou entre irmãos – é uma maneira de fixar rapidamente características físicas desejáveis na prole, como uma ossatura mais pesada ou uma pelagem mais densa. Daí a predileção dos criadores que priorizam a beleza por esse tipo de acasalamento.

Mas qual seria o preço a pagar por tanta facilidade? Quando não estamos mais falando de raças em formação, quando já temos no mundo uma quantidade suficiente de exemplares de uma raça para diversificar os acasalamentos e ampliar o gene pool, será que o inbreeding continua sendo uma necessidade?

Pesquisas recentes indicam que a consangüinidade não é o atalho genético inócuo que muitos criadores acreditam ser. Coincidência ou não – pessoalmente, acredito que não – a média de longevidade dos Goldens das linhagens de trabalho, que carregam muito menor taxa de inbreeding, é superior à média de longevidade dos Goldens extremamente consangüíneos criados para exposições de beleza. Enquanto que os cães do primeiro grupo frequentemente atingiram os 12 a 14 anos de idade, os outros dificilmente passaram dos 10 anos, com muitas mortes prematuras aos 6 e 7 anos de idade.

As recentes discussões sobre o empobrecimento genético e a exacerbação de traços físicos que ameaçam a qualidade de vida dos cães de raça motivaram até mesmo o conservador The Kennel Club, na Inglaterra, a emitir orientações no sentido de desencorajar a preferência de criadores e árbitros de exposições por cães muito exagerados. Resta saber, contudo, se essas diretrizes sequer serão lidas, uma vez que muitos juízes de exposição são também criadores que banalizam os riscos do inbreeding e da criação de cães exagerados.

Fato é que cada um faz o que considera necessário para ter êxito no seu hobby de escolha. De certa forma isso é válido. Ora, se o objetivo de um criador é vencer competições de beleza, imprimir a sua marca nos cães, desenvolver cães mais exuberantes, fortes, marcantes, peludos; tudo bem. O problema, a meu ver, é a manutenção de um cão que reúne tantos extremismos fora da pista.

E essa é a grande ironia por trás de toda essa discussão. A finalidade direta ou indireta de qualquer criação comercial é a venda de filhotes para famílias. Aquele cão que brilha nas pistas, mas que não sobrevive sem ar-condicionado, ou que requer escovações diárias para a pelagem não embolar e criar fungos, será o membro da família de alguém.

Para muitos criadores que priorizam resultados dramáticos em pista, as crescentes limitações de saúde de seus cães são toleráveis. Mas será que para a família que adquire esses cães os fins também justificam os meios?

Minha consciência em relação aos cães de raça tem se alterado e se expandido muito nos últimos dois anos. Tenho me aberto a novos pontos de vista e abandonado conceitos de “certo e errado” que não parecem afinados à filosofia que venho buscando como dona de cães e como futura médica-veterinária holística.

No Brasil, até mesmo por falta de opções, tendemos a enxergar a coisa apenas pelo prisma da criação voltada para exposições de beleza. Mas o que não falta na Cinofilia mundial são pontos de vista diferentes, de acordo com o objetivo de cada criação.

O que me traz ao texto abaixo. A autora, Gayle Watkins é uma criadora norte-americana de Golden Retrievers de trabalho há 29 anos e adepta das dietas naturais para cães. Com a permissão dela, reproduzo um de seus artigos mais refrescantes, traduzido para o português. O original você encontra aqui.

“Os tempos estão mudando”

por Gayle Watkins and Andy Chmar

Estava lendo o AKC Gazette (Informativo do American Kennel Clube) hoje de manhã e a coluna da (raça) Silky Terrier me chamou a atenção. Na verdade minha reação foi tão forte que decidi escrever este post. A autora da coluna, Vicki Bratton escreveu algumas “Questões sobre Criação” e nesse pequeno artigo apresentou muitas das antigas crenças sobre criação de cães que eu acredito terem sido a ruína dos cães de raça. Se a raça que crio, o Golden Retriever, pode servir como um indicativo, os cães de raça estão enfrentando declínios na expectativa de vida, aumento do número de doenças hereditárias e características tão extremadas que resultam em dificuldades de manter alguns exemplares de certas raças.

Eu não conheço a senhora Bratton e não pretendo atingí-la, uma vez que ela está somente identificando três valores chave que têm passado por gerações de criadores e organizações nacionais como o AKC. Entretanto, gostaria de colocar que esses valores, estabelecidos no final dos anos 1800 e começo de 1900, eram tão experimentais quanto o conceito de “registros fechados” e de “cães de raça pura“. Conceitos que têm sido praticados em apenas algumas outras espécies e não tão amplamente. E o estado atual dos cães de raça e dessas outras espécies está revelando as falhas fatais dessa prática.

Primeiro, ela diz “Eu acredito que poucos cães merecem ser reproduzidos – apenas os melhores, aqueles que possuem características que beneficiariam a raça, deveriam ser usados para criação.” Num primeiro momento (e para mim, no início da minha carreira como criadora), isso parece fazer sentido perfeitamente. Nós queremos criar somente o melhor, certo? O que poderia estar errado com isso?

Se você pensar em um único acasalamento, esse comentário parece razoável, mas quando consideramos uma população inteira, como uma raça de cães, essa idéia gera uma diminuição na variedade genética. Isso também é chamado de “Fenômeno do Padreador Popular” e é algo que acontece com o Golden Retriever. Estudos mostram que os Goldens possuem o menor número de machos reprodutores: apenas 5%. Esse método consolida os maus genes de poucos cães dentro da raça e reduz as oportunidades de acasalamentos abertos (out-crosses) para as gerações futuras.

Se tivéssemos uma completa e perfeita informação de toda a genética e conhecêssemos o futuro de cada cão, talvez isso não fosse uma prática tão perigosa, porque poderíamos ver os genes deletérios que cada cão carrega, mesmo os mais campeões, e para onde a raça tende a ir no futuro. Mas, de acordo com a situação atual da genética canina e com o que mostram as bolas de cristal, não temos essa informação. Conseqüentemente, ao reduzirmos a variedade genética, nós consolidamos os maus genes dos padreadores populares junto com os bons genes que desejamos e escolhemos. Tipicamente, nós não percebemos esses problemas até muitas gerações mais tarde, num momento em que pode ser tarde demais caso um padreador popular já tenha se espalhado pelo gene pool. Nos Goldens, a disseminação de doenças como a uveíte pigmentar (problema oftalmológico) e a disfunção cricofaringeana (problema de deglutição) parecem ser resultado de uma super seleção de padreadores populares.

E, é claro, os conselhos da Sra. Bratton presumem que criadores de cães são capazes de definir “o melhor”. Isso é definido na pista de exposição, onde apenas a aparência de um cão é avaliada? – não há nenhuma avaliação de temperamento, saúde, inteligência ou desempenho. Ou é na performance em campo que o propósito da raça é avaliado? As exposições de beleza não levam em conta nenhuma outra característica, particularmente temperamento ou saúde. Competir é da natureza humana, ou pelo menos da natureza norte-americana, então nossa história de conquistas na criação se tornou uma competição que nos desviou de avaliar o padrão para preferirmos o extremo. Ser bom o suficiente não é o bastante. Isso acaba gerando divisões na raça. Os cães da mesma raça que competem em exposições têm a aparência e a atitude completamente diferentes daqueles que praticam esportes e competições de caça. É preciso um olho treinado para saber que se tratam de cães da mesma raça. Então, como é que isso nos ajuda a selecionar o melhor?

Ou nós dependemos dos criadores de hoje para determinar o melhor para o futuro? Para mim, isso dá responsabilidade demais a pessoas que vivem numa sociedade que está cada vez mais longe da agricultura e criação de animais. Os criadores de cães de hoje em dia não vêm mais de criadores ou conhecedores de cavalos ou gado, ou fazendeiros. Hoje em dias as pessoas decidem que gostam da aparência de uma determinada raça, se envolvem com ela, e mesmo com pouquíssimo conhecimento se tornam criadores. A comunidade cinófila com a qual se envolvem – exposições, performance ou estimação – descreve o que é o ideal e lá vão elas produzir cães para vencer. É difícil para essas pessoas dar um passo para atrás e ter uma visão mais ampla ou mesmo uma perspectiva histórica da situação.

Na Alemanha, criadores de cães possuem diretores de criação que avaliam todo o plantel e julgam quais animais são apropriados para reprodução. Mesmo sendo um sistema imperfeito, pelo menos este método conta com cinófilos responsáveis, experientes e instruídos para tomar importantes decisões sobre criação. Norte-americanos nunca toleraram esse nível de controle nacional, e, com exceção de criadores de algumas poucas raças, como o Shiloh Shepherd, não apóiam a idéia.

Em relação à criação de cavalos, federações regionais, nacionais e internacionais estabeleceram padrões de criação e programas de inspeção para ajudar os criadores a selecionarem seu plantel. Criteriosamente, juízes experientes e respeitados comparam os animais reprodutores com o padrão estabelecido. Até nos Estados Unidos esse processo é aceito para cavalos, mas não para cães, onde a criação é deixada para criadores individuais, independentemente de seus conhecimentos ou experiência.

A Sra. Bratton continuou então dizendo “Acredito que a castração é obrigatória se um cão não possui alguma coisa de que a raça realmente precisa.” O foco da nossa sociedade em relação à castração beira a obsessão. Pesquisas recentes estão mostrando claramente que a castração não é um procedimento tão neutro quanto pensávamos; ela pode causar alguns problemas de saúde que são mais comuns e freqüentes e tão fatais quanto os dois cânceres (mamário e testicular) limitados pela castração (mais informações aqui). Igualmente importante, na minha opinião, é que a castração remove os genes daquele cão do gene pool da raça para sempre (ao menos que o sêmen desse cão seja colhido e congelado. E essa opção não existe para fêmeas no momento).

Muitas vezes a decisão de castrar é feita muito cedo na vida do cão, normalmente por volta de 8 semanas, antes de sabermos como aquele cão vai ficar ou mesmo “do que a raça realmente precisa”. Como eu digo aos meus clientes, apenas porque um cão é inteiro não significa que ele ou ela tem que cruzar, apenas significa que ele/ela pode cruzar. Mas, significa, principalmente, que os genes daquele cão podem ser adicionados à raça no futuro, mesmo que só para oferecer diversidade.

Sou uma estudante de pedigrees de Golden Retriever, então passo horas entre pedigrees antigos em nosso maravilhoso banco de pedigrees online (obrigada, Amy!). Já que estou criando uma raça que está enfrentando um declínio da expectativa de vida e um aumento meteórico nos casos de câncer, longevidade é uma característica que procuro. De vez em quando encontro um pedigree maravilhoso, cheio de cães longevos que pareciam ser bons cães de caça. Entretanto, meu ânimo acaba rápido quando descubro que nenhum desses cães foi reproduzido e seus genes se perderam para sempre. Se isso acontecesse apenas uma ou duas vezes, tudo bem, mas na raça que crio isso tem acontecido centenas e centenas de vezes já que nosso gene pool encolhe cada vez mais. Me entristece saber como poderíamos usar esses genes hoje, mesmo que os criadores de ontem nem imaginassem isso.

Finalmente, a Sra. Bratton diz “Se cada geração que você produz não é melhor do que a geração anterior, então você precisa reavaliar seu programa de criação”. Novamente, à primeira vista essas palavras parecem um lema a ser seguido, não? Não deveríamos estar fazendo progresso? Certamente não queremos andar para trás, certo?

Vamos pensar um pouco mais sobre isso. Pela minha perspectiva, essa crença é uma das causas dos extremos vistos na raça que crio, e há algumas raças, como os Buldogues e Bull Terriers, que largamente já ultrapassaram os Goldens no departamento de extremos. Se a raça que você cria está bem, seu trabalho é melhorá-la se você quer ser um bom criador, então provavelmente você vai escolher uma pequena, porém bem nítida característica da raça e se focar nisso. O resultado desse tipo de abordagem é que os Goldens hoje possuem uma pelagem muito mais longa do que qualquer caçador, ou mesmo dono de cão de estimação, deseja. E hoje se compra Goldens nas mais específicas nuances, como “British Cream” (“Creme Inglês”). Da mesma forma, Labradores de exposição possuem caudas de lontra mais acentuadas do que qualquer cão de caça jamais precisou.

Mas esses são exemplos relativamente benignos. Há muito mais resultados perigosos da obsessão por uma única característica. O tamanho da cabeça dos Buldogues e seus corpos bizarros criaram um animal que não pode cruzar ou parir naturalmente. As rugas dos Shar-Peis resultam em entrópios e infecções de pele. Pequineses enfrentam sérios problemas respiratórios por conta de suas caras achatadas. E por aí vai…

Existe um pouco de arrogância em se pensar assim. Quem somos nós para dizer que o Golden Retriever original não é o ideal? Quem somos nós para dizer que podemos melhorar aquele animal? Bem, se você comparar os primeiros Goldens com os atuais Goldens de exposição você vai ver que alguém achou que poderia fazer significantes “melhorias” já que existe pouquíssima semelhança entre os fundadores da raça e os atuais campeões.

Não acredita em mim? Aqui estão duas fotos tiradas do Retrieverman, um ótimo blog, aliás. O primeiro é o Campeão Noranby Campfire, o primeiro Golden Retriever campeão de conformação; e o segundo é um típico exemplo dos atuais Goldens campeões. A mesma raça? Uma raça melhorada? Se sua resposta é “sim” só porque o segundo cão é mais “bonito”, pergunte-se qual dos cães se parece mais com um cão de trabalho com o qual você gostaria de caçar regularmente na Escócia, terra de origem do Golden?

 

Também me pergunto quando é que em nossas “carreiras” como criadores é que estamos preparados para produzir melhor. Não é só depois de um certo tempo de criação que sabemos o suficiente, temos uma perspectiva ampla e estamos intelectualmente preparados para finalmente definir o que é o melhor e fazer as decisões que nos levarão até lá? Então, o que é que devemos fazer no começo das nossas “carreiras”? Como desenvolvemos experiência antes de termos experiência?

Eu diria que o maior objetivo a que um criador pode aspirar é reproduzir e manter um cão que represente os primeiros cães dessa raça, sejam eles os cães nativos de uma região, ou as escolhas dos fundadores originais da raça. O ajuste apropriado mais lógico é alinhar os cães à função da sua raça. Variações de raças de trabalho baseadas no terreno ou região podem ser apropriadas, mas também podem resultar na formação de uma nova raça.

Há um pequeno número de criadores e geneticistas indo contra a maré e questionando esses antigos pontos de vista dos criadores, mas se o American Kennel Club continuar a apresentar essas falácias como o caminho para o sucesso, temo pelo futuro dos cães de raça. Cães de raça estão em um momento crítico. Se não questionarmos o que fizemos no passado, se não fizermos uso dos avanços da genética para guiar nossas decisões de seleção, se não pudermos ser honestos sobre o uso apropriado de cada raça, as futuras gerações de criadores e proprietários de cães vão colocar a culpa – bem merecida – sobre os nossos ombros.

Postado por Gaylan’s Golden Retrievers em 21 de março de 2010 às 7h47