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A cobaia: Oliver, Sheltie de 10 anos

Quem já acompanha há algum tempo o site, blog ou Twitter do Cachorro Verde sabe que a questão das novas diretrizes vacinais para cães e gatos é um dos meus focos de estudo. Considero o assunto tão interessante e relevante que o selecionei para ser o tema de meu trabalho de conclusão de curso da graduação, que será embasado em mais de 60 artigos científicos publicados nos últimos dez anos.

Se você ainda não está familiarizado com:

  • a classificação das vacinas para cães e gatos em essenciais, opcionais e não-recomendadas;
  • esquemas de imunização elaborados sob medida para o estilo de vida e histórico de cada paciente;
  • problemas de saúde associados à vacinação excessiva,

…recomendo que se atualize lendo esse nosso artigo, recheado de referências bibliográficas de peso. Se você lê em inglês e se interessa por esse assunto, recomendo enfaticamente que complemente seu aprendizado conferindo também as diretrizes vacinais de aplicação internacional propostas em 2010 pelo World Small Animal Veterinary Association. A revisão de conceitos relacionados à vacinação, com objetivo de tornar essa importante medida mais segura, ética e eficiente vem acontecendo no âmbito acadêmico, em idioma estrangeiro, infelizmente longe das vistas da maioria dos veterinários clínicos-gerais brasileiros.

Mas vamos ao cerne desta postagem. Recentemente, no Twitter, lamentei acerca da dificuldade de se encontrar no Brasil (moro em São Paulo) o serviço de titulação de anticorpos para as doenças infecciosas mais importantes dos pets, como a cinomose e parvovirose caninas e a panleucopenia dos gatos. Eu estava equivocada – e esta é a boa notícia.

Titular anticorpos é medir a concentração de anticorpos IgG, específicos contra cinomose, por exemplo, no soro do sangue de um cão. Se o resultado do exame der positivo, significa que anticorpos foram detectados e que o animal já entrou em contato com o agente causador da doença, seja por meio de vacina ou por infecção prévia natural – e se encontra protegido.

A literatura científica recente afirma que uma única vacina viva contra cinomose ou parvovirose, se aplicada em um cão saudável com mais de 4 meses de idade, é capaz de conferir proteção por 9 anos ou mais. Essa informação tornou obsoleta e cientificamente injustificável a prática dos reforços anuais contra essas doenças. (Observação: vacinas contra agentes não-virais, como a leptospirose, leishmaniose e a “tosse dos canis” protegem por menos tempo, até um ano, em média. Para cães que correm risco de contraí-las, continua indicado o reforço anual.)

De carona nas novas descobertas, muitos países passaram a realizar reforços trienais contra as doenças virais mais importantes: raiva, cinomose, parvovirose e hepatite infecciosa canina. Mas a permissão para vacinar a cada três anos pode gerar insegurança nos donos de pets. Se a literatura cita que a vacina protege por até 9 anos ou mais, vacinar a cada três anos também não seria um excesso? O oposto também gera dúvidas. E se, por algum problema – conservação inapropriada da vacina, baixa imunidade do animal à ocasião da aplicação – o organismo do cão não reconheceu o antígeno vacinal e não montou uma resposta imune adequada? Ou ainda, como comprovar para os donos do hotelzinho/ clube de agility/ etc que seu cão se encontra imunizado contra essas doenças? A resposta: realizando regularmente (ex: anualmente ou trienalmente) a titulação de anticorpos!

Com o exame de titulação – amplamente adotado nos EUA, Europa e Canadá, e que passou a ser estudado até por veterinários da Nigéria, em 2007 – é possível verificar se nossos peludos de fato se beneficiariam com a aplicação do reforço e fazê-lo realmente sob necessidade, montando protocolos 100% individualizados.

A amiga Camilli Chamone foi quem primeiro me informou que os laboratórios Tecsa oferecem titulação de anticorpos IgG contra cinomose e parvovirose. Para colocar à prova a novidade, a Dra. Gabriela Barroso Netto – da clínica veterinária Cantinho Animal, onde faço estágio – e eu, usamos o Oliver, meu Pastor de Shetland de 10 anos de idade, como cobaia.

Olivinho é um cão muito saudável; teve uma gastroenterite aguda aos 3 anos e, depois disso nunca mais apresentou outro problema. Ele recebeu doses (praticamente) anuais de V8 + antirrábica até julho de 2007. Desde essa data, não tornou a receber outra dose de V8 ou V10. Assim sendo, ele está há 3 anos e 8 meses sem receber essas vacinas. Pareceu-nos o candidato perfeito para nosso experimento. Será que ainda apresentaria anticorpos contra cinomose e parvovirose?

Carteirinha de vacinas do Oliver mostra as últimas doses de V8

Como se deu a titulação

Dra. Gabriela entrou em contato com o Tecsa e perguntou os valores para os dois exames.  Cada exame custa cerca de R$ 100,00; caro, eu sei. Mas eles nos prometeram um desconto da ordem de 50% para os próximos exames solicitados. Provavelmente o serviço ainda está caro assim por ser pouco realizado.

Agendamos a colheita de sangue para a última terça-feira cedo. Oliver foi trazido ao Cantinho Animal, sem estar de jejum (não é necessário). O sangue foi colhido em tubo “seco”, sem o anticoagulante EDTA e armazenado na geladeira até que o funcionário do laboratório viesse buscá-lo. A amostra seguiu no mesmo dia para a sede do laboratório, localizada em Belo Horizonte, MG. O resultado foi enviado para nossos e-mails dois dias depois, na quinta-feira cedo.

Oliver obteve o escore 3 (título de 1:80) para cinomose, equivalente a positivo médio. E escore 2 (título de 1:40) para parvovirose, considerado positivo baixo. A escala de escore vai de 0 a 6, mas isso é mera formalidade. Qualquer titulação positiva (a partir de 1) é considerada indicativa de exposição prévia à vacina ou ao agente (infecção natural), demonstrando proteção.

Muitos autores citam que o resultado que importa é um simples “sim”, ou positivo, independentemente da graduação.

Veja o que diz este trecho, retirado do artigo Vaccine use and disease prevalence in dogs and cats (2006), de Marian Horzinek: “A questão da titulação obtida ser considerada suficiente para conferir ou não proteção contra a doença (desafio) proporcionada por um vírus de campo é irrelevante. Não é o anticorpo remanescente no sangue que determina a sobrevivência frente à infecção, mas a população de células de memória que pode rapidamente se expandir. De acordo com Maruyama et al, 2000, uma população de clones dessas células se divide lentamente por toda a vida do animal. “

Ou seja, a presença de anticorpos específicos contra parvovirose e cinomose é importante, mas não porque esses anticorpos determinem a proteção do animal perante a doença. Não são estes, sejam eles 3 ou 3.000, os principais heróis. E sim, as células de memória. De acordo com estudos, por meio de vacinação – ou infecção natural – essas células “aprendem” a fabricar anticorpos específicos e o fazem sempre que o agente infeccioso em questão invade o organismo, controlando a infecção. Essas células retêm essa memória e se dividem lentamente, por toda a vida do animal, mantendo vivo o segredo de como combater diversas doenças. Nesse maravilhosamente esclarecedor vídeo (em inglês) gravado em 2011, a médica-veterinária holística Dra. Karen Becker entrevista o médico-veterinário líder em Imunologia desde a década de 1970, Dr. Ronald Schultz, Ph.D., que explica que o que importa é o resultado da titulação ser positivo.

Ué, mas, se esses anticorpos que “sobraram” do último contato com o agente infeccioso não são os defensores que realmente evitam as doenças, e sim as células de memória, qual seria a finalidade de mensurá-los pela titulação? Não seria mais produtivo avaliar se a população de células de memória existe e está ativa?

Pois é, isso seria o ideal, já que as células de memória são as fabriquinhas de anticorpos. Mas infelizmente ainda não é possível quantificá-las comercialmente em pets. Podemos apenas avaliar a concentração de anticorpos remanescentes. Já é bem melhor do que nada.

Titulação positiva / negativa – como proceder

Se o exame de titulação deu resultado negativo, fica indicado o reforço específico contra aquela doença, mesmo que o animal ainda tenha células de memória – afinal, não podemos ter certeza da existência delas. Mas, se existem títulos (concentrações mensuráveis de anticorpos), podemos considerar que o animal está protegido.

Alguns autores recomendam um reforço vacinal para títulos de baixo escore, como 1 e 2. Outros afirmam que qualquer título é sinônimo de proteção, pois se existem anticorpos residuais, existem células de memória. A decisão sobre vacinar ou não animais com títulos baixos deve ser discutida com o médico-veterinário, levando em conta o risco de exposição e de infecção.

Tomemos o Oliver por exemplo. Ele obteve título de escore 3 para cinomose e de escore 2 para parvovirose. Sabendo que ele é sadio, apresenta alta resistência a doenças, é muito bem alimentado, passeia nas ruas, mas não freqüenta parques caninos, já recebeu inúmeros reforços vacinais e está fora da faixa etária acometida pela parvovirose (1-12 meses), decidimos por não realizar o reforço com a vacina V2, que protege exclusivamente contra cinomose e parvovirose.

Laudo da titulação de anticorpos do Olivinho

Estamos agora verificando a possibilidade de submetê-lo à titulação de anticorpos contra hepatite infecciosa canina (ou adenovirose tipo I). Infelizmente, o mesmo laboratório ainda não titula para essa doença, mas deixamos uma enfática sugestão para que passem a fazê-lo. Resta também pesquisarmos sobre titulação para as principais doenças felinas. Me parece que existe titulação para anticorpos IgG contra panleucopenia felina. À medida que formos descobrindo coisas interessantes, posto aqui.

Mas por que é importante titular anticorpos contra cinomose, parvovirose e hepatite infecciosa canina e não contra todas as outras doenças para as quais existem vacinas?

  • Coronavirose (presente na V6, V8 e V10) – causa uma infecção intestinal bastante branda em filhotes de cães de até 2 meses de vida e a vacina protege por 9 anos ou mais.
  • Leptospirose (presente na V8, V10 e na vacina que protege exclusivamente contra lepto) – se o cão corre risco de se infectar, deve receber a vacina anualmente ou mesmo semestralmente. Vacinas não-virais (e a lepto é causada por bactéria) protegem por até 1 ano.
  • Leishmaniose – se o cão corre risco de se infectar, deve receber a vacina anualmente. Vacinas não-virais (e a leish é causada por protozoário) protegem por até 1 ano.
  • Parainfluenza (presente na V6, V8 e V10) – infecção viral de bom prognóstico. A vacina protege por 9 anos ou mais.
  • Adenovirose tipo II (presente na V6, V8 e V10) – infecção viral em geral de bom prognóstico. A vacina protege por 9 anos ou mais.
  • “Tosse dos Canis” – se o cão corre risco de se infectar, deve receber a vacina anualmente. Vacinas não-virais (e a “tosse” pode ser causada por bactérias) protegem por até 1 ano.
  • Giardíase – é atualmente considerada não-recomendada pelos pesquisadores por sua baixa eficácia preventiva, pela curta duração de sua proteção e porque a doença tem tratamento e, em geral, bom prognóstico.
  • Raiva – embora exista no Brasil o serviço de titulação de anticorpos contra raiva e que haja estudos comprovando cientificamente que a vacina antirrábica protege por no mínimo 3-5 anos, a nossa legislação exige o reforço anual contra essa doença.

Se interessou por averiguar o status imunológico de seu pet? Converse com seu veterinário sobre o serviço de titulação de anticorpos oferecido pelos laboratórios Tecsa e combine tudo!  Ou ainda, caso resida em São Paulo, dê um pulo na clínica veterinária Cantinho Animal, que a Dra. Gabriela prestará esse serviço ao seu pet. Lá, inclusive, você encontra produtos próprios para protocolos individualizados: vacina que protege exclusivamente contra leptospirose, vacinas V6 (sem lepto) e V8, vacina contra “tosse dos canis” e contra leishmaniose.

Para reduzir as chances de ocorrerem reações adversas, procure vacinar seu peludo de acordo com o histórico e estilo de vida dele.  Evite vacinar às cegas: a vacinação não é um procedimento inócuo. Valorize o profissional que trata a imunização com a seriedade que esse serviço médico merece.

Observação: se você tem informações sobre outros laboratórios brasileiros que estão oferecendo ou que passarão a oferecer o serviço de titulação de anticorpos IgG contra as doenças acima citadas, por favor, entre em contato conosco para que possamos divulgá-los.

Bom apetite e uma lambida do Cachorro Verde!

 

Referências:

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