Tive a sorte de acompanhar até o fim a vida de quatro cães que partiram velhinhos. Duas delas, as mais longevas — Maya e Polly — morreram por complicações da Doença Renal Crônica (DRC). Conheço bem essa doença: começa de forma silenciosa e termina de forma devastadora.
Dados da rede de hospitais Banfield (EUA, 2020) indicam que cerca de 1 em cada 10 cães idosos tem DRC, e 1 em cada 3 gatos com mais de dez anos. Nos felinos, a prevalência é maior porque eles perdem néfrons mais cedo (muitas vezes antes dos 7 anos), tendem a viver sub hidratados quando comem ração seca e têm maior propensão à fibrose renal quando sofrem quadros inflamatórios. Cães de porte pequeno são mais afetados que os grandes por viverem mais. Minha percepção pessoal: se seu gato ou cão de porte pequeno ou médio ultrapassar os 16 anos, é quase certo que haverá algum grau de comprometimento renal.
A DRC também pode surgir cedo. Formas precoces — como displasia renal, glomerulopatias e a policistose renal dos Persas — são, em geral, hereditárias. Já atendi Goldens bem jovens com o quadro. 😢
É importante esclarecer: a DRC não é causada por dieta rica em carne. A restrição de proteína ocorre apenas nos estágios mais avançados, para controle de sinais como náuseas, vômito e mal-estar, porque o rim deixa de tolerar teores normais de proteína dietética. Mas isso é bem diferente de dizer que a proteína causa a doença.
Pense na DRC como um quadro inflamatório — porque é isso que ela é. Suas causas incluem sub hidratação crônica, toxinas (metais pesados, agrotóxicos, produtos de glicação avançada, os AGEs), hipertensão, fármacos nefrotóxicos (certos antibióticos e antiinflamatórios), doenças urinárias, infecções (doença do carrapato, piometra, leishmaniose), doenças autoimunes, doença periodontal e, claro, o envelhecimento.
A DRC é caracterizada por perda progressiva e irreversível da função renal. O paciente emagrece, recusa alimento, vomita, fica prostrado. Perder a Polly para um quadro neurocognitivo associado à DRC me tornou mais vigilante e proativa. Hoje, busco preservar ao máximo a saúde renal dos pets sob meus cuidados — e compartilho nesse post condutas que podem ajudar.
Atenção aos primeiros sinais
A doença renal crônica (DRC) pode já estar presente e o cão ou gato não exibir nenhum sinal clínico (sintoma). Mas, em boa parte dos casos, animais sênior e idosos começam a apresentar aumento da sede, urina anormalmente diluída (clara), redução do apetite, vômitos e emagrecimento.
Diagnóstico
Para diagnosticar DRC solicitamos dosagem de uréia, creatinina, fósforo, relação proteína:creatinina urinária (RPC), urinálise (urina tipo I), aferição de pressão arterial, fósforo, ultrassonografia abdominal e SDMA.
Não basta dosar uréia e creatinina para avaliar os rins – em geral, quando a creatinina se eleva é porque mais de 70% da capacidade renal está comprometida, oferecendo um diagnóstico tardio em que há pouco a ser feito pelos néfrons restantes.
Olho vivo nas tendências
Submeta o cão ou gato a um check-up anualmente a partir da idade sênior (7-8 anos) e semestralmente na fase geriátrica (a partir dos 12 anos) para detectar tendências de subida em parâmetros como creatinina, fósforo e pressão arterial.
A presença de proteinúria (proteína na urina), a diminuição da densidade da urina (xixi clarinho, como água) e um resultado crescente do SDMA, um marcador precoce da DRC, podem ser indicativos de alteração renal.
Estadiamento
O diagnóstico da Doença Renal Crônica (DRC) em cães e gatos é baseado nas diretrizes da IRIS (International Renal Interest Society).
A sociedade classifica a doença em quatro estágios (1 a 4) de acordo com os resultados dos exames mencionados anteriormente, sempre realizados no cão ou gato bem hidratado.
Estágio 1
Nesse estágio não há sinais clínicos, mas alguns exames já apontam alteração renal. A creatinina está em níveis normais (até 1,4 no cão e até 1,6 no gato), mas o SDMA pode estar levemente elevado (acima de 14). Pode haver perda de proteína na urina (RPC maior que 0,2 em gatos e maior que 0,5 em cães), a urina pode estar muito diluída, os rins podem parecer alterados na ultrassonografia ou radiografia e a pressão arterial pode estar normal ou elevada.
Estágio 2
Aqui, os níveis de creatinina começam a se elevar: 1,4 a 2,0 nos cães e 1,6 a 2,8 nos gatos. O animal ainda pode ser assintomático ou apresentar sinais leves, como aumento do consumo de água. O SDMA fica entre 18 e 25 e pode haver proteinúria leve e/ou hipertensão.
Estágio 3
Os níveis de creatinina se elevam – 2,1 a 5,0 nos cães e 2,9 a 5,0 nos gatos. O SDMA fica acima de 25. Falta de apetite, vômitos e perda de peso estão presentes e a proteinúria e hipertensão são comuns.
Estágio 4
A creatinina passa do 5,0, há anemia, hiperfosfatemia (aumento dos níveis de fósforo) e acidose metabólica. O animal apresenta claros sintomas de uremia, o acúmulo de substâncias tóxicas no sangue que normalmente seriam eliminadas pelos rins. Quando os rins falham, essas toxinas se acumulam e causam náusea, vômito, perda de apetite, fraqueza, hálito com odor de urina e até alterações neurológicas.
A dieta nos estágios 1 e 2
Nos primeiros estágios da DRC o papel da dieta é retardar a inevitável progressão da doença, manter o pet pelo máximo de tempo possível nos estágios mais brandos. Nesse momento, a proteína da dieta não deve ser restrita, deve ser de excelente qualidade (carnes magras, ovos) e, se o pet tiver níveis elevados de fósforo, fontes protéicas mais baixas nesse mineral devem ser preferidas, como bucho bovino, patinho bovino, lombo suíno, carne de coxa de frango e fígado de frango no lugar do bovino.
Restringir x modular
Restringir proteína significa fornecer menos que o mínimo recomendado por entidades como NRC e FEDIAF. Embora isso não seja indicado no início da DRC, pessoalmente considero vantajoso modular a proteína em cães. Se um cão em estágio 2 consome 55% de proteína, posso reduzir para 30%, ainda bem acima do mínimo de 18%. Isso ajuda a controlar ureia e creatinina e a acostumar o cão, enquanto ainda tem bom apetite, a uma dieta menos rica em carnes.
A dieta nos estágios 3 e 4
Nos estágios finais a dieta ajuda a minimizar os sinais clínicos desencadeados pela uremia. Aqui, sim, se recomenda restringir o teor de proteína da dieta abaixo do mínimo de 18% para a dieta de cães e de 26% para a dieta dos gatos. Mas o desafio nesse momento é saber o quanto restringir, porque ainda não se conhece ao certo o requerimento protéico mínimo dos nefropatas ao mesmo tempo em que sabemos que a desnutrição protéica piora o prognóstico.
Restrinja fósforo
Restringir fósforo da dieta de pets nefropatas comprovadamente reduz a progressão da DRC e prolonga o tempo de vida. Um estudo (Elliott et al, 2000) verificou que oferecer uma dieta moderada em proteína e baixa em fósforo a gatos nefropatas em estágio 2 a 3 da DRC dobrou a sua expectativa de vida. Um estudo similar com cães nefropatas em estágio 3 (Jacob et al, 2002) demonstrou que uma dieta nesses mesmos moldes foi 2,5x mais eficaz em manter os cães livres de sintomas e promoveu uma vida 3x mais longa do que a dieta sem restrições.
Hidratação é fundamental
Um cuidado nefroprotetor essencial de se ter durante toda a vida do pet, mas principalmente a partir da idade sênior, é com a hidratação adequada. A dieta deve conter pelo menos 70% de água – o teor médio de água presente na Alimentação Natural. Vale hidratar a ração seca de pets alimentados assim. Além disso, sirva pequenas porções de água saborizada com caldo de ossos/carne ou iogurte entre as refeições e espalhe tigelas de água fresca pela casa.
Outros cuidados
Uso racional de fármacos com potencial nefrotóxico (antiinflamatórios, certos antibióticos), preservação da microbiota intestinal, administração diária de ômegas-3 EPA e DHA e cuidado regular com os dentes também ajudam a poupar os rins. Uma vez diagnosticado o quadro, vejo valor na prescrição complementar de nutracêuticos como Ubiquinol (ou Coenzima Q10), o cogumelo cordyceps, própolis verde, fibras solúveis, curcumina, chitosan e simbióticos (pré e probióticos).
Pontos mais importantes
- Mantenha seu cão ou gato muito bem hidratado, principalmente quando for sênior
- Atenção a tendências de elevação (fósforo, creatinina, SDMA, proteinúria, pressão arterial) nos resultados dos exames ao longo do tempo
- Não realize somente dosagem de uréia e creatinina para investigar a saúde renal do seu cão ou gato sênior – o diagnóstico feito baseado somente nesses parâmetros é tardio.
- Mediante diagnóstico de DRC procure uma veterinária nutróloga experiente para adequar a dieta de acordo com o estágio, bem como uma boa nefrologista ou clínica-geral para individualizar e acompanhar o manejo farmacológico do quadro.
- Gosto bastante de indicar modalidades terapêuticas complementares, como Acupuntura e Homeopatia, para o controle da DRC.
Algumas referências científicas:
- Applied Veterinary Clinical Nutrition, Second Edition, Fascetti et al, 2024.
- Nutritional Management for Dogs and Cats with Chronic Kidney Disease, 2021, Valeria J. Parker. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0195561621000176?via%3Dihub
- The Emerging Role of Water Loss in Dog Aging, Guelfi et al, 2025; https://www.mdpi.com/2073-4409/14/7/545
- Curcumin Ameliorates Kidney Function and Oxidative Stress in Experimental Chronic Kidney Disease, H. Ali et al, 2017, https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/bcpt.12817
- Mitochondrial Dysfunction in Kidney Disease and Uremic Sarcopenia, Takemura et al, 2017. https://www.frontiersin.org/journals/physiology/articles/10.3389/fphys.2020.565023/full
- Sistema do IRIS de estadiamento da DRC: https://www.iris-kidney.com/iris-staging-system
- Survival of cats with naturally occurring chronic renal failure: effect of dietary management, Elliott et al., 2000; DOI: 10.1111/j.1748-5827.2000.tb03932.x
- Clinical evaluation of dietary modification for treatment of spontaneous chronic renal failure in dogs, Jacob et al., 2002; DOI: 10.2460/javma.2002.220.1163
Sylvia Angélico
Médica Veterinária
pós-graduada em Nutrição Animal
CRMV-SP 29945
Comunicado Cachorro Verde
As informações divulgadas em nossas postagens possuem caráter exclusivamente educativo e não substituem as recomendações do médico-veterinário do seu cão ou gato. Por questões ético-profissionais, a Dra. Sylvia Angélico não pode responder certas dúvidas específicas sobre questões médicas do seu animal ou fazer recomendações para seu pet fora do âmbito de uma consulta personalizada. Protocolos de tratamento devem sempre ser elaborados e acompanhados pelo médico-veterinário de sua confiança.
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